O desmonte de políticas públicas e o avanço da fome desabam entre os mais pobres

Construídas ao longo das décadas mais recentes, aquelas políticas haviam ajudado o País a reduzir um de seus indicadores mais degradantes. Foto: Reprodução

Postado em: 19-09-2020 às 06h00
Por: Sheyla Sousa
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Construídas ao longo das décadas mais recentes, aquelas políticas haviam ajudado o País a reduzir um de seus indicadores mais degradantes. Foto: Reprodução

Os
resultados mais drásticos do desmonte das políticas públicas, executado com
afinco e determinação desde o governo passado, desabam sobre as famílias mais
pobres, desnudando o lado mais perverso do liberalismo radical que passou a
dominar a retórica de um certo tipo de economista que viceja na chamada grande
imprensa e circula com descontração pelos mercados. “Entregar resultados”
tornou-se o grande mantra dessa turma e o jornalismo econômico, salvo
meritórias exceções, tem embarcado acriticamente nessa conversa.

Construídas
ao longo das décadas mais recentes, aquelas políticas haviam ajudado o País a reduzir
um de seus indicadores mais degradantes. Entre 2004 e 2013, de acordo com a
Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), o número de brasileiros que passavam fome (ou viviam em
situação de insegurança alimentar grave, em “tecnocratês”) foi reduzido em
quase 52,0%, saindo de 14,990 milhões para 7,220 milhões.

Foi
o resultado de uma combinação de políticas, que incluíram desde programas de
transferência de renda, a exemplo do Bolsa Família, dos benefícios de prestação
continuada e do abono salarial, e ainda a correção do salário mínimo em
percentuais acima da inflação, o que gerou impactos igualmente nos valores
pagos à população mais desprotegida pelos mesmos programas, além de melhorar na
mesma proporção aposentadorias e pensões devidas às faixas de rendimentos mais
baixos. Políticas de apoio à agricultura familiar, com garantia de compra da
produção pelo governo para distribuição na merenda escolar, ajudavam a reforçar
o arsenal contra a fome.

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A
instalação de mais de 1,3 milhão de estruturas para captar águas de chuva no
interior do Nordeste, favorecendo perto de 5,0 milhões de famílias por meio do
Programa Cisternas, como lembra a economista Tereza Campello, em entrevista
recente ao jornalista Luís Nassif, veiculada pela TV GGN em sua plataforma no
YouTube(www.youtube.com/watch?v=mGmUFVrw0Ks), contribuiu igualmente para que o
País deixasse o Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas para a
Alimentação e a Agricultura (FAO, na sigla em inglês).O desmonte nesta última
área, por exemplo, emperrou a liberação de recursos para novas cisternas. O
orçamento para o programa desabou de R$ 248,8 milhões em 2017 (quando foram gastos
de fato apenas R$ 49,05 milhões) para quase R$ 50,7 milhões em 2020. Mas, até
julho, nada havia sido desembolsado – o que não surpreende.

O horror, o
horror

O
desempenho recente, sob inspiração dos austericidas que passaram a dominar a
política e o debate econômicos no País, sugere que os indicadores da fome
tendem a piorar ainda mais. O número de brasileiros em insegurança alimentar
grave, passando fome mesmo, no significado mais literal e covarde do termo,
saltou para 10,280 milhões na pesquisa realizada em 2017/2018, num salto de
42,0% desde 2013. Retrocedeu-se praticamente uma década em cinco anos no
combate à fome. Este, portanto, é o “legado” mais concreto e bárbaro deixado
até o momento pelos ultraliberais. Num país que é líder global na exportação de
alimentos, o feito realizado não é uma ironia, mas uma política deliberada de
achaque aos mais pobres, de destruição do futuro possível.

Balanço

·  
O
levantamento do IBGE mostra outros lados perversos da realidade brasileira,
enquanto economistas se ocupam na defesa do teto de gastos, que limita de forma
inconstitucional as despesas com saúde e educação, e no debate infindável sobre
o tal “risco fiscal” (num País que deve a si mesmo em sua própria moeda).

·  
Embora
os alimentos tenham respondido, em 2017/2018, por 23,4% de toda a despesa daqueles
que passam fome diariamente, o gasto médio mensal dessas famílias correspondeu
a menos de 62% do valor dispendido com alimentação pelas famílias com ampla
segurança alimentar.

·  
Os
números do POF mostram que as famílias mais ricas e, portanto, fora da zona de
risco alimentar, gastavam em média R$ 479,93 por mês apenas na compra de
alimentos e essa despesa representava apenas 16,3% de todo o seu gasto. As
famílias com fome puderam dispor de apenas R$ 297,27 para colocar algum
alimento em casa.

·  
As
disparidades regionais surgem igualmente de forma gritante. Considerando todas
as formas de insegurança alimentar (leve, moderada e grave), 57,0% dos
domicílios do Norte e 50,3% do Nordeste enfrentavam fome
de forma esporádica ou constante, privando adultos da alimentação adequada ou,
no extremo mais grave, sem condições para alimentar sequer suas crianças.

·  
A
pandemia pode ter agravado esse cenário, a despeito do auxílio emergencial
assegurado pelo Congresso (e contrariando a equipe econômica). Entre a primeira
semana de maio e a última de agosto, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios (PNADCovid-19), o número de desempregados experimentou um salto de
39,4%, subindo de 9,817 milhões para 13,687 milhões (3,870 milhões de
desocupados a mais). Ao mesmo tempo, o total de pessoas ocupadas encolheu 2,1%,
baixando de 83,945 milhões para 82,173 milhões (quer dizer, 1,771 milhão de
vagas a menos). A taxa de desemprego avançou de 10,5% para 14,3% em igual
período.

·  
A
deterioração no mercado de trabalho, na verdade, tem sido ainda mais dramática.
Quando se consideram o total de desempregados e o número de pessoas que haviam
desistido de procurar emprego, mas gostariam de trabalhar, o “desemprego real”
já atinge 32,9% (e já era elevada na semana inicial da pesquisa, girando ao
redor de 30,5%).

·  
Essa
taxa pode ser obtida a partir da comparação com a soma de trabalhadores
ocupados, desempregados e aqueles fora do mercado (quer dizer, que deixaram de
buscar emprego), mas que gostariam de trabalhar se tivessem a oportunidade de
uma colocação digna. Essa “força de trabalho ampliada” reunia 122,518 milhões
de pessoas na semana entre 23 e 29 de agosto. Desse total, nada menos do que
40,345 milhões não tinham emprego ou simplesmente pararam de procurar por falta
de opções. Na segunda semana de maio, esse contingente somava 36,107 milhões de
trabalhadores. Desde lá, portanto, o número aumentou 11,7%, com acréscimo de
4,237 milhões de pessoas.

·  
O
resultado entregue pelos ultraliberais será, dessa forma, maior insegurança
alimentar. Numa “inovação” digna dos novos governantes, criou-se o “mais fome”.

 

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